sábado, 4 de julho de 2009

Entrevista especial com Cleonice Berardinelli


A coragem e a obra de Padre Antonio Vieira


Cleonice Berardinelli, 90 anos, é doutora e atualmente professora emérita da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Com mais de 60 anos dedicados à formação de estudantes de Letras, ela é considerada uma das profissionais de pesquisa que mais se dedicou e conhece a literatura portuguesa.

Publicada no dia 8/09/2006
É um grande estímulo para todos nós podermos ler essa entrevista de uma profissional entusiasta e que, apesar de tantos percalços na vida dos educadores, aos seus mais de 90 anos mantém a lucidez, a jovialidade, o dinamismo que lamentavelmente falta a tantos jovens... Leiamos e comentemos.
IHU On-Line - Gostaria que a senhora falasse um pouco de sua pesquisa sobre o jesuíta Antonio Vieira? Qual o foco escolhido pela senhora? O que mais lhe surpreende na pessoa dele? Cleonice Berardinelli - Olha a sua pergunta não é muito fácil de responder, pois eu não estou fazendo uma pesquisa sobre o Padre Antonio Vieira. Tenho uma linha de pesquisa entre as quais uma é sobre o Padre Antonio Vieira. Então, a minha pesquisa particular sobre Vieira não tem existido porque eu tenho me dedicado a outros autores. Mas é claro que tenho uma paixão Vieiriana há tempo. IHU On-Line - Como o Padre Antonio Vieira pôde, através de suas palavras, produzir um valor de fé, uma identidade religiosa no que ele falava? Cleonice Berardinelli - Eu acho que o Padre Antonio Vieira, nos seus textos, às vezes nos leva por caminhos que não entendemos muito bem, até que se esclareça o seu pensamento. Isso é fascinante. Ele nos faz concordar com uma postura e depois ele diz "mas", e desse "mas", ele vai buscar uma negação daquilo que ele parecia ter aceitado. E novamente ele faz o mesmo processo, até que enfim, ele chega a sua conclusão final. Eu acho isso esplêndido e é o que dificulta um pouco a compreensão linear de seu texto, o que eu considero um dos maiores atrativos dele. E acredito que para seus ouvintes, o Padre Antonio Vieira se torna um pouco um jogo de advinhação: o que é que vem por aí? O que mais ele vai dizer? Mas tudo é sempre uma afirmação do seu amor a Deus, da sua fé. Não me lembro de ter encontrado em nenhum momento da sua obra um ponto em que não houvesse a confissão, a declaração, a reafirmação de uma fé inabalável. IHU On-Line - A força de padre Antonio Vieira está em seu discurso, no caso, os seus sermões? Cleonice Berardinelli - No sermão da sexagésima, por exemplo, ele parece fazer uma crítica do barroco, do sermão barroquino, que naquele tempo não se chamava assim, chamava-se cultista ou conceptista. Então, ele vai dizendo quais são os defeitos desse sermão. Na verdade, para mostrar os defeitos que há no sermão barroco ele vai utilizando um processo barroco, só que nele essas coisas são feitas da maneira mais perfeita. Ele é um dominador total da palavra. Sabe manejá-la, distribuí-la, repeti-la, pô-la em choque umas contra as outras. Acho que, de fato, o Padre Antonio Vieira é um dos autores mais importantes da literatura portuguesa, e menos estudado por causa do gênero pelo qual ele optou, que é o sermão. Ou seja, o sermão não tem uma aceitação tão geral como o romance ou a poesia. Ele é sempre doutrinal, sempre traz uma lição moral, e é isso que o Padre Antonio Vieira faz nos seus sermões. Ele tem uma série de sermões do mandato, por exemplo, em que ele celebra o seu amor a Cristo. Porque ele mostra que o amor de Cristo é o mais perfeito de todos. É aquele que se deu em amor e deu-se até a morte. Mostra-nos a sua fé segura e inabalável. IHU On-Line - Não é exagero algum chamar o jesuíta Antonio Vieira de um artista da Língua Portuguesa? Cleonice Berardinelli - Nem é possível chamá-lo de outra coisa. Além disso, Padre Antonio Vieira é muitas outras. Mas, esta sua frase o define. Ele é realmente um artista que sabe manejar, utilizar a língua portuguesa da maneira mais feliz e mais eficiente nos caminhos que ele traça para nós. IHU On-Line - Como podemos trazer para o mundo atual o pensamento de Antonio Vieira retratado nos Sermões? Cleonice Berardinelli - Eu não sei, o mundo atual está tão revirado, tão atingido por uma porção de falsas fés e de falsas ideologias, que não é muito fácil. Mas acho que para todo aquele que tiver sensibilidade para a utilização e compreensão, a palavra de Vieira possa levar realmente a fé. Os que são sensíveis compreendem que ele utiliza a palavra como um grande pintor utiliza o pincel, isto é, sabe quais são as cores, quais são os matizes, qual é a intensidade que se põe a tinta ou não se põe. O Padre Antonio Vieira sabe tudo isso, todos os segredos da língua. Fernando Pessoa chamou-lhe de Imperador da língua portuguesa. IHU On-Line - O que o Padre Antonio Vieira esperava do mundo, do ser humano? Cleonice Berardinelli - Ele esperava que o ser humano desse aquilo que de melhor Deus lhe deu. É muito importante nós pensarmos no Padre Antonio Vieira como um homem muito aberto, muito esclarecido e corajoso. Ele era um sacerdote jovem. Um dia, ele foi pregar um dos sermões do rosário, acho que era da Nossa Senhora do Rosário dos Negros. Existe uma devoção freqüente em igrejas à Nossa Senhora do Rosário, e nós descobrimos que a igreja foi feita, conservada e mantida por uma confraria de negros. Então, é numa dessas datas que o Padre Antonio Vieira está diante dos senhores de engenho e dos negros que foram admitidos, lá atrás, de pé e mal vestidos. Parece que vejo o quadro que parece que ele pintou, ou se eu ouvi através das suas palavras, que estariam os senhores de engenho todos em ternos engomados brancos, e lá atrás os negros empurrados como o resto. E o Padre Antonio Vieira dirige-se aos negros e diz que neles ele vê Cristo. Que como eles, negros, Cristo foi injuriado, cuspido, maltratado e que, portanto, é neles que ele sente retratado o próprio Cristo. E com isso, Padre Vieira estimula para que os negros se sintam eleitos, privilegiados e não renegados. Acho esta uma das passagens mais bonitas da obra de Vieira. IHU On-Line - Em que parte da obra de Padre Antonio Vieira a senhora concentrou mais seu estudo? Cleonice Berardinelli - Eu me interessei muito pelos sermões engajados, em que ele defende uma contra-idelogia e enfrenta os senhores de engenho. Imagine o que é um jovem sacerdote diante do poder econômico que representa os tais senhores de engenho para defender diante deles, acusando-os, senão direta, indiretamente, de tudo que se fazia contra os negros. Ele defendeu os índios, os menos favorecidos, defendeu os judeus num momento em que isso era perigoso. Eu vejo Vieira como uma figura belíssima, um mártir até. E depois, com algumas proteções, ele foi vivendo sua vida até os 80 anos, quando ainda escrevia seus sermões. IHU On-Line - É correto afirmar que a vida do Padre Antonio Vieira apresentava inúmeras turbulências? Cleonice Berardinelli - A vida de Padre Antonio Vieira teve turbulências no aspecto da proteção que ele dava aos índios, aos negros, aos judeus, a todos esses que eram mais fracos. Era a coragem de enfrentar o poder instituído, econômico. IHU On-Line - O que a obra de Padre Antonio Vieira representa para a cultura nacional e internacional? Cleonice Berardinelli - Internacional eu já acho um pouco difícil. Embora ele tenha tido em vida um grande prestígio internacional. Por que ele viveu na Itália e nós temos notícias de que as pessoas acorriam cedo às igrejas para ouvir o Padre Antonio Vieira. Ele foi protegido pela rainha Cristina, tinha uma notoriedade internacional. Ele até escreveu alguns sermões em italiano muito bem escrito. Para a língua portuguesa, Padre Antonio Vieira é uma figura exponencial. Ele é o único orador sacro que Portugal teve. A sua obra é inestimável.

2 comentários:

Thera disse...

Ela é muito linda! Que todos nós, professores e professoras, possamos estar lindos e lindas assim, mesmo após nosso centenário de vida saudável e feliz! Com nossas pesquisas, projetos, participações em bancas, seminários, congressos... Enfim, abençoados por Deus e bonitos por natureza, em pleno "vapor" (ai, meu Deus! Não quis dizer vapor fantasmagórico)em vigília, conscientes, verdadeiros, íntegros, dignos!
Paz e Bem para nós todos!

Terezinha Fatima Martins (Mestranda em Letras e Ciências Humanas - UNIGRANRIO).

Professora Gilda disse...

Sou professora de Literatura, meu nome é Gilda, moro em Minas Gerais e sou uma admiradora da professora Cleo, a conheci em meus estudos sobre a Literatura Portuguesa, e acabei me apaixonando por ela, devido a sua postura e dedição profissional, quero aprender muito com esse exemplo, de pessoa. A serenidade e seriedade, para mim, é seu ponto marcante